O texto abaixo pertence a peça Auto da Lusitânia, escrita pelo grande mestre humanista, Gil Vicente, em 1531 e representada pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III quando nasceu seu filho, D. Manuel. O auto atesta a genialidade deste dramaturgo português, pois apesar de ter sido escrito há quase 500 anos, mantém-se extremamente atual.
Neste auto, assiste-se ao casamento de Portugal, cavaleiro grego, com a princesa Lusitânia. Dois demônios, Berzebu e Dinato, que aparecem no texto vêm presenciar o casamento e escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém.
O autor deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais desta cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.
Fiz algumas atualizações vocabulares para tornar mais fácil a leitura e o entendimento do trecho.
Leiam e comprovem a atualidade e a genialidade deste auto!
Todo o Mundo e Ninguém
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Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando alguma coisa
que perdeu; e, logo após ele, um homem, vestido como pobre. Este se chama
Ninguém, e diz:
Ninguém: Que andas tu aí
buscando?
Todo o Mundo: Mil coisas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando teimando,
por quão bom é teimar.
delas não posso achar,
porém ando teimando,
por quão bom é teimar.
Ninguém: Qual é seu nome,
cavaleiro?
Todo o Mundo: Meu nome é Todo o
Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: E eu tenho por nome
Ninguém,
e busco a consciência.
e busco a consciência.
Berzebu para Dinato: Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei,
companheiro?
Berzebu: Que Ninguém busca
consciência.
E Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém para Todo o Mundo: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco respeito social muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus
mande.
Que tope com ela já.
Berzebu para Dinato: Outra adição nos acude:
escreve aí, a fundo,
que busca respeito social Todo o
Mundo,
e Ninguém busca virtude.
Ninguém para Todo o Mundo: Buscas outro maior bem que esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada coisa que errasse.
Todo o Mundo para Ninguém: Gosto muito de enganar,
Ninguém para Todo o Mundo: Que mais buscas?
em cada coisa que errasse.
Berzebu para Dinato: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Berzebu: Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém para Todo o Mundo: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida e quem me a dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Berzebu para Dinato: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Berzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo para Ninguém: E mais queria o paraíso,
sem ninguém para me estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo por isso.
Berzebu para Dinato: Escreve com muito cuidado.
Dinato: Que escreverei?
Berzebu: Escreve que Todo o Mundo quer paraíso,
e Ninguém paga o que deve.
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
Berzebu para Dinato: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!
Dinato: Quê?
Berzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso
Berzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso
e Ninguém diz a verdade.
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Berzebu para Dinato: Escreve, mãos a obra!
Dinato: Que me mandas escrever?
Berzebu: Põe aí muito declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
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