Nosso Drops Literário de hoje é um famoso soneto de Camões, "Sete anos de pastor Jacó servia", que retrata uma das mais belas histórias de amor e dedicação da Bíblia Sagrada, uma verdadeira lição de como o sentimento do amor pode ser abnegado. Após o poema, pode-se ler uma breve análise semiótica sobre ele, elaborada pelo professor de Teoria da Literatura da UFPB, Amador Ribeiro Neto. Ao final da análise, postei um vídeo do You Tube com a declamação do poema. Então, ao poema:
Sete anos de pastor Jacó servia
1 Sete anos de pastor Jacó servia
2 Labão, pai de Raquel, serrana bela,
3 Mas não servia ao pai, servia a ela,
4 E a ela só por prêmio pretendia.
5 Os dias, na esperança de um só dia,
6 Passava, contentando-se com vê-la;
7 Porém o pai usando de cautela,
8 Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
9 Vendo o triste pastor que com enganos
10 Lhe fora assim negada a sua pastora,
11 Como se a não tivera merecida,
12 Começa de servir outros sete anos,
13 Dizendo: - Mais servira, se não fora
14 Para tão longo amor tão curta a vida!
Luís Vaz de Camões
"Vejamos. Jacó serve a Labão porque deseja Raquel. Isto está dito nos 3 primeiros versos. Mas o que acontece? Labão engana Jacó e vai lhe entregando Lia. Coisa que o ingênuo Jacó só percebe no oitavo verso. E, humilde, por amor ideal (isto é: platônico), se dispõe a trabalhar outros sete anos, e mais outros sete, se assim a vida lhe permitir.
Cumpre observar que o soneto subdivide-se em dois momentos: por Raquel e sem Raquel. Esta divisão se dá exatamente nos versos 7 e 8:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Cada verso iconiza um ano dos sete de trabalho. Como, cabalisticamente, o sete em Literatura (e não só na Literatuta, evidentemente) sempre esteve ligado ao infinito, a cada porção “infinita” de tempo, Jacó renova seu amor por Raquel e dispensa Lia.
Ora, por que Labão é tão sádico? Aí é que está a questão: Labão não é sádico: Jacó é quem é masoquista, pois desde o verso 2 o nome de Lia já aparece disseminado, muito sutilmente, (é claro: afinal estamos no domínio da linguagem da poesia) e só Jacó (e com ele o leitor ingênuo de poesia) não percebe. O verso 2 diz: “Labão, pai de Raquel, serrana e bela”. Não diz que ele é também o pai de Lia. Aliás, o nome Lia só aparece explicitamente no último verso da primeira parte. Bem sintomático: Labão está a fim mesmo de esconder o jogo. Mas vai pipocando ora aqui, ora ali, uma dicazinha de que tem outra filha. Já no segundo verso, ao lado do nome de Raquel ele coloca, obliquamente, o de Lia. Vejamos:
Labão, pai de Raquel, serrana bela.
Mais à frente, no verso 10, a verdadeira pastora aparece dissimulada novamente:
Lhe fora assim negada a sua pastora,
A obsessão platônica de Jacó não lhe impõe limites. Ao contrário: outras vidas quisera ter para servi-las como paga de seu amor por Lia. E o verso final, revela-nos mais uma vez o nome de Lia:
Para tão longo amor tão curta a vida!
Nem o ruído do rock nem as abordagens não escondem o que a Semiótica nos revela: o ícone da dissimulação está presente e faz o encanto do soneto camoniano. Cabe apenas ao leitor/ouvinte atual saber ler/ouvir com um novo repertório.
Às abordagens convencionais da lírica de Camões (muito importantes, diga-se de passagem), a Semiótica vem apenas propor mais uma, que, aliás, amplia o leque de compreensão da magnitude deste grande poeta do amor. Com essas e mais aquelas, quem sai ganhando é o próprio leitor, que a cada geração percebe mais uma faceta instigante do grande lírico Luís Vaz de Camões."
(RIBEIRO NETO, Amador. Jornal de Poesia: dezembro de 1997)